domingo, 17 de abril de 2016

Remida - Parte 1

Já passaram pela sensação de se sentir sendo puxada da água quando você estava se afogando? Quando vem o ar, o alívio, seu peito agradece pelo oxigênio depois de tanto tempo submersa? Foi assim. Foi dessa forma naquele dia. Fui trazida de volta à vida, mesmo que eu pensasse que já vivia antes. E tudo era um plano; o plano perfeito.
Primeiro, Deus fez o mundo. Se dedicou em cada pequeno detalhe de toda a natureza. Criou o homem, a mulher, se decepcionou não muito tempo depois. Mas Ele já sabia que isso aconteceria. Depois, uma chance. Uma forte chuva fez com que toda a terra fosse tomada de águas, a humanidade se afogou, menos um homem e sua família em um grande barco, com um casal de cada animal. O homem era bom, Deus tinha esperanças de que seus descendentes fossem bons, mas novamente se decepcionou.
E foi dessa forma por muitos anos, se decepcionando muito com uns, se orgulhando de outros; até que resolveu libertar um povo. Inimagináveis coisas aconteceram para que isso fosse possível, guiados por um escolhido, a nova esperança. Se decepcionou durante a caminhada desse povo no deserto, mas deixou instruções. Adiantaram, mas foram deturbadas.
Deus precisou tomar uma grande decisão... Morrer por justos parecia algo que qualquer um faria, mas, morrer por pecadores? Parecia impossível. Então viu seu Filho lá nos céus, enviou-o para a terra, e ele morreu pelos ímpios. Mas não apenas morreu; ele reviveu. E subiu aos céus levando todo o erro, o pecado e oferecendo perdão; inclusive para mim.
Mas antes do dia em que fui puxada de volta ao ar, eu não sabia de nada disso.
            -Amiga, precisamos ir! – Disse Daniele, minha melhor amiga desde a infância, enquanto lia a lista de pessoas que confirmaram presença em uma das maiores festas da cidade.
            -Dani, você sabe que eu não gosto de sair! Preciso terminar o trabalho de história pra terça. E se eu for nessa festa e ficar no domingo de manhã igualzinho você fica de ressaca, prefiro ficar em casa. – Respondi.
            -Mas você sempre fica em casa! Não sai nunca, Marcela! Chega a ser chato ser sua amiga!
Olhei para a Dani por cima dos meus óculos, enquanto assoprava meu café em um sábado de manhã. Dani sempre dizia isso, e sempre se desculpava depois. Pegou o notebook, sentou do meu lado, e me abraçou.
            -Desculpa... eu te amo e você sabe disso. Mas sabe o que eu amo também? – Eu já sabia o que ela diria, imitei o que ela sempre diz, e acabamos falando juntas. – Open Bar!
           -Mas Dani, é muita gente! Sempre fica abafado, sempre tem caras babacas pensando que podem colocar a mão na gente quando bem entender, sempre tem bebida derramada... e mais: sempre alguém vomita, e quando eu vou pra área de fumantes tentar respirar algum tipo de oxigênio, sempre tem drogas. – Argumentei, como se fosse funcionar! Dani já sabia de cór tudo o que eu achava sobre festas, mas nem por isso desistia. Pegou o notebook, colocou no colo.
            -Olha... O Lucas vai! É sua chance, Marcela! É apaixonada por ele desde a oitava série, e nunca sequer falou com ele! – Tentei olhar para ela com desprezo, mas ela me conhecia bem demais. – E olha, o Rafael, amigo dele, também vai estar lá!
            -Sim, eles e mais um milhão de meninas que babam no Lucas. Esquece, Dani! Ele nunca vai me notar, nem se eu aparecer de roupa íntima na frente dele!
            -Por que diz isso? É o que pretende? – Disse Dani em um tom debochado. Ri com ela, joguei uma almofada. – Claro que não!
            -Ah é, esqueci que você é santa. – E voltou a mexer no computador, e eu me levantei.
Ela sabia o quanto isso me enlouquecia. Durante a minha infância, meus pais foram bem religiosos. Eu não podia sequer brincar com meninos, ou usar calça dependendo de onde fosse, mesmo que eu fosse criança e ninguém se importasse com aquilo. Eu vivia na igreja, e durante os cultos, as crianças ficavam em uma sala especial, onde aprendíamos sobre Deus, mas de uma forma mais inocente. E tudo o que eu aprendi naquela sala, não saiu da minha cabeça.
Quando eu tinha 10 anos, minha mãe descobriu que meu pai traía ela com uma mulher do trabalho. Eles se divorciaram, meu pai começou a morar com a amante, e minha mãe ficou com ódio de Deus por permitir que meu pai fosse tão cafajeste. Ambos saíram da igreja, e eu fui arrastada nesse rompimento. Minha mãe agora trabalha e passa as noites assistindo as novelas. Ás vezes sai com as amigas do trabalho, mas nunca vi ela com mais ninguém depois do meu pai.
Toda a segurança e a preocupação que tinham quando eu era pequena, sumiu. Se eu quiser sair, eu saio. Se quiser sair com minissaia, eu saio. Se quiser beber, fumar, namorar, eu faço. Minha mãe se ocupa demais odiando e sentindo falta do meu pai, e meu pai se ocupa demais vivendo a nova vida. Isso aconteceu 7 anos atrás, e fui livre desde então.
Mas nenhuma dessas coisas jamais chamou minha atenção. Nunca me senti morrendo de vontade de beber até esquecer meu nome, me drogar, ficar com garotos... Apesar de ter liberdade, isso nunca me chamou atenção. Talvez porque durante toda a minha infância, ouvia que Deus está sempre com a gente e não gosta quando fazemos coisas ruins, ou porque simplesmente não é minha praia.
            -Desculpa. – Dani levantou, me abraçou de novo. – Mas fala sério! Você tem a liberdade de fazer o que quiser, e fica dentro de casa num sábado à noite, enquanto o amor da sua vida está em uma festa que você poderia estar! Eu preciso pagar meu irmãozinho pra dar um jeito dos meus pais não descobrirem de nada quando eu saio... você não aproveita a sorte que tem!
O que ela disse me fez pensar. Será que tenho sorte? Digo, poder sair a hora que quiser, fazer o que quiser sem se preocupar com a pressão dos pais é um sonho pra maioria dos jovens da minha idade. E eu tenho isso, e prefiro ficar em casa. Parece inverso, estranho.
            -Ok, eu vou. Mas se engana se pensa que eu vou ficar tomando conta de você durante toda a festa!
Já eram seis horas da tarde, a festa começaria às nove, Dani resolveu que nos arrumaríamos juntas. Foi para casa, pegou algumas roupas, voltou e ficamos jogando conversa fora até começar a nos arrumar. Confesso que durante toda a tarde, conversamos muito mais sobre a possibilidade do Lucas se interessar por mim do que qualquer outra coisa.
            -E aí vocês estão lá no meio, aquelas luzes, a fumaça, enquanto seu cabelo está levemente enrolado, e ele te olha e te deseja como nunca desejou outra garota na vida. – Eu precisei rir. Dani falava como se fosse ela quem assistisse todos os filmes de romance do Netflix.
           - Dani, muito provavelmente meu cabelo estará ensopado de suor, porque no meio da balada de qualquer festa é sempre muito calor; ele não vai conseguir me ver porque estará lotado e cheio de fumaça. Sejamos realistas: as chances são zero.
            -Tenha fé, amiga! – Disse a Dani enquanto olhava as roupas.
Assim que chegamos na festa, nenhuma surpresa. Havia alguns caras que já vieram bêbados, outros que estavam bebendo, e outros mais inteligentes que comiam antes de beber. Casais se pegando em todos os lugares possíveis, o bar lotado, música alta, e os perfumes já começaram a se enrolar no ar provocando uma fragrância nada agradável. Eu realmente não entendia o que os jovens mais gostavam nesses lugares, mas se eu tinha sorte, precisava agarrar.
Mas algo estava errado. Quando peguei, finalmente, depois de 20 minutos em pé, o primeiro copo de bebida, senti algo estranho. Uma sensação de que não era para eu estar lá; que aquele lugar era ruim. Mesmo que estivesse entusiasmada pensando ser sortuda por ter tanta liberdade, e tentando me convencer a curtir aquele momento, me senti extremamente incomodada.
Depois de muita dança, de ver minha melhor amiga sendo beijada por três bocas diferentes, depois de ter que fingir ser um casal lésbico com ela para mais quatro garotos diferentes só pra nos deixarem em paz, eu ainda me sentia incomodada por estar ali.
Não aguentava mais aquele ar de fumaça misturado com pelo menos 300 perfumes diferentes; de pisar sem querer em vômitos aleatórios e segurar velas pra Dani. Resolvi sair para a área de fumantes, mesmo sabendo o que me esperava lá fora, enquanto a Dani se agarrava com a quarta boca da noite. Até que o vi. Lucas estava lindo com uma blusa em gola V e calças jeans, conversava com o Rafael e outros amigos... Eu apenas sentei em um murinho do lado de um casal, o que não era nem surpresa, e fiquei lá observando. Ele estava bem, não estava bêbado, parecia ter sido um dos espertos que comeu antes de vim.

Ri de mim mesma. Havia ficado as horas anteriores conversando com a Dani sobre a remota possibilidade do Lucas me notar, e como seria mágico nosso encontro, igual dos filmes de romance. Mas não aconteceria... Eu era uma das menos atraentes meninas naquele lugar, não havia chance dele me ver. E isso tudo eu pensei encarando-o; e quando voltei a ter consciência, ele estava me encarando também. E sorrindo.

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